Pouca-terra-pouca-terra-uuuu-uuuUUUuuu
Pouca-terra-pouca-terra-uuuu-uuuUUUuuu
Em poucos lugares me sinto tão bem como num comboio. Num qualquer, apesar da preferência pelos interregionais.
Quando se viaja de comboio, e se quer desfrutar ao máximo, são precisas três coisas: uma mente confusa, um caderno para escrever (ou um livro) e a nossa música. É assim que tento viajar sempre. Devo confessar que nunca abandono nenhuma destas coisas.
Quando estou farta de esperar na estação, ouço, melhor ou pior, uma voz que anuncia a sua chegada e que me promete uma viagem diferente. Começo a ficar mais calma. Ah! Não, ainda não! Esqueci-me que vem aí o comboio. Agora vai ser a confusão de entrar, procurar o lugar, marcado ou não. Dá-me licença? Desculpe. Só um jeitinho… Obrigada! Ouço a buzina que grita partida.
Chego finalmente ao lugar, o lugar escolhido (provavelmente pelo acaso), o lugar eleito para uma grande viagem. (Acho que os lugares são intemporais. Um lugar é efémero, é aquilo que mais temos de nosso e que menos possuímos. É isso. Acho que um lugar é isso.)
Agora sim, começo a ficar mais calma. As pessoas vão sentando-se. A poeira torna a baixar. Chegou a hora de embarcar na mais maravilhosa das jornadas. A viagem do pensamento, do tudo, das árvores que se vêem da janela, do rio, do nevoeiro, do sono, da chuva, do nada, das palavras, do sonho.
A música é a primeira a chegar. É importante que seja a primeira. É importante que seja nossa. E é, ainda, importante que nos faça sentir… qualquer coisa… tudo…ou mesmo… nada. Ou que não nos faça sentir de todo.
Ajeito-me (como que a enroscar-me) no banco até me sentir confortável. Olho para o mundo que corre lá fora. Já que eu, eu, estou num lugar sem tempo, numa viagem que dura um tempo que não existe.
Já estou quase calma: ainda falta o revisor. O revisor vem sempre. Bem ou mal disposto. Mais ou menos sorridente. Mas vem. Gosto sempre quando o revisor sorri para mim e me diz “obrigado”. Eu retribuo.
Estou calma.
Agora junta-se tudo, a paisagem lá fora, a música, o livro que folheio ou a ponta da caneta que caminha sobre o caderno branco. O movimento do comboio acolhe-nos, uma mãe que embala um filho nos braços. Somos todos só um. Em movimento. Num lugar e num tempo que não existe. A realidade afasta-se cada vez mais.
O sonho é sempre a opção seguinte. A dormir ou acordada. Longe. Estou tão longe… E o mundo gira. E as pessoas nascem, vivem e morrem. As suas vidas. As suas verdades e os seus segredos. Os animais e as árvores. A água que corre para o mar e para a terra. As pessoas que se destroem, a elas próprias, aos outros. E eu, tão longe… Eu estou tão longe. Anjos que cantam, pés que caminham sobre o mar, copas de árvores que chegam ao céu, animais que falam e eu, eu posso…voar. Longe. Tão calma.
Anunciam a estação antes da minha¹. O tempo recomeça a passar. O mundo torna a girar cá dentro. A vida torna a ser minha e a depender das minhas decisões. Sou eu de novo. A calma demora sempre menos a partir que a chegar. Anunciam a minha estação. Arrumo o caderno e a caneta (ou o livro). Desligo a música. Visto o casaco (há quase sempre um casaco a vestir). Levanto-me e caminho até à porta. O comboio pára. Saio. O mundo gira cá fora. Já não estou calma.
Nota: Tudo isto deixa de ser verdade quando o acaso escolhe para o lugar atrás do nosso uma criança alegre e activa, especialmente se tiver um brinquedo com som.
1 - Nem sempre anunciam a estação. O anúncio é feito apenas no intercidades e no alfa. Nos outros comboios tenho que as ver, implicando uma maior atenção que, com o tempo, é quase um reflexo.
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